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A liberdade de expressão não pode ser transformada em uma caricatura perversa

Vander Loubet*

Nos últimos tempos, “liberdade de expressão” tornou-se o lema fácil com que se busca justificar todo tipo de abuso. E esse fenômeno se tornou especialmente comum no próprio Parlamento.

É uma tristeza ver uma tão grande conquista da humanidade em sua evolução política ser transformada em uma caricatura perversa.

É tanto simplismo e tanta mentira que não dá para achar que os abusos sejam cometidos por ignorância. Quem quisesse debater a sério o princípio da liberdade de expressão começaria por estudar o assunto. E bastaria ler algumas páginas de doutrina jurídica para perceber que é um tema complexo, e não o vale-tudo que se quer fazer crer.

Não, não se trata de ignorância. Infelizmente, o caso é de malícia mesmo. Muita gente quer difundir visões erradas como forma de poluir o debate, incitar desconfiança contra as instituições e assim corroer os fundamentos da democracia.

Eu não venho discutir, então, com aqueles que dia após dia tentam confundir as pessoas. Mas eu me permito falar diretamente ao cidadão. Não é possível, no tempo de um discurso, apresentar os muitos detalhes da disciplina legal e jurisprudencial do princípio da liberdade de expressão. Mas cabe, ao menos, desfazer alguns mitos, a fim de ajudar o cidadão a não se deixar engambelar pelos argumentos simples e errados que se ouvem frequentemente por aqui.

Um dos mitos diz respeito a nossas garantias parlamentares. Por mais que o dispositivo que enuncia a inviolabilidade de deputados e senadores por “opiniões, palavras e votos” não traga em si nenhuma ressalva, isso de jeito nenhum significa que a imunidade é absoluta!

A Constituição não deve ser interpretada de forma a permitir leituras absurdas. No entanto, é isso que se faz quando se atribui à Carta a intenção de escusar todo crime que um parlamentar cometa por meio de palavras.

Ainda que o dispositivo constitucional não traga uma ressalva explícita, é perfeitamente óbvio a qualquer leitor que não seja mal-intencionado que, por “opiniões, palavras e votos”, a Constituição se refere às manifestações feitas no exercício das atribuições típicas de um parlamentar. Esse contexto é explicitamente enunciado nas constituições de outros países democráticos, como a Alemanha e a Espanha. A garantia existe para defender a democracia, não para proteger delinquentes.

Se isso é verdade para parlamentares, mais ainda para o cidadão comum. A garantia da liberdade de expressão não significa, nunca significou, em lugar nenhum do mundo, que toda forma de comunicação, a qualquer audiência, em qualquer contexto, seja automaticamente protegida. Nem no Brasil, nem nos Estados Unidos — que levam fama de ser um país onde o princípio da liberdade de expressão é interpretado com especial força.

Aliás, aí estão outros mitos que é preciso desfazer. Como disse, muitos dos que vivem a bradar por liberdade de expressão têm a intenção real de solapar o respeito às instituições. Por isso, censuram as decisões do Judiciário brasileiro não com base na lei brasileira, mas em opiniões filosóficas rasas, geralmente importadas do debate público americano.

Os mesmos que vivem a deplorar o que chamam de “ativismo judicial” parecem querer que, em matéria de liberdade de expressão, os juízes e tribunais brasileiros ignorem a lei vigente em nosso país, aplicando, em seu lugar, uma analogia com o direito estrangeiro.

Mas esse raciocínio é baseado em mitos. Em primeiro lugar, porque, mesmo nos Estados Unidos, a Suprema Corte reconhece diversas categorias de discurso não protegidas pela Primeira Emenda, tais como fraude, difamação, incitação a comportamento ilícito, e obscenidade.

E mais importante ainda é ressaltar que essa imagem dos Estados Unidos como terra da liberdade de expressão vigorosa é recente e questionável. No começo do século passado, a Suprema Corte americana tinha um entendimento bem restritivo da liberdade de expressão, e manteve as condenações de gente que apenas panfletava contra a participação do país na Primeira Guerra, ou que participava de reuniões para fundar um partido comunista.

Foi só nos anos sessenta que a Suprema Corte mudou de entendimento. Diante de um caso em que um membro da Ku Klux Klan havia sido condenado por defender uma marcha à capital, a Suprema Corte cassou a condenação do réu, tornando-se muito mais rigorosa na defesa da liberdade de expressão.

Só desde então é que a Justiça americana passou a fazer-se “libertária”, sustentando até mesmo o direito de nazistas fazerem passeatas.

Difícil escapar à sensação de que essa trajetória revela os vieses institucionais americanos: censura para quem questiona a ordem, liberdade de expressão para quem defende privilégios racistas.

Não é à toa que alguns querem importar o modelo para cá. Que o cidadão esteja atento e não se deixe enganar.

*Deputado federal (PT-MS)

Charge: Gilmar Fraga/Agência RBS

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